quarta-feira, 11 de abril de 2018

SOCIALISMO DE CALVINO

                                                            INTRODUÇÃO


Esta postagem procura analisar as idéias de Calvino sobre política, a atuação cristã na vida pública através de cargos políticos eletivos e a ética associada a esse mister.

Visa, ainda, uma reflexão sobre as práticas dos grupos reformados da atualidade, herdeiros dos ensinos e práxis do reformador de Genebra, notadamente no Brasil, nesta área essencial para a sociedade e o bem comum.

Isso se faz especialmente necessário no momento em que tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que contrariam as Escrituras; em que cresce a participação, por vezes nada ética, de grupos neopentecostais no setor público e em que o aumento da corrupção e da falta de escrúpulo por parte de alguns políticos “profissionais” tem produzido descontentamento na população em geral, levando ao descrédito o setor público e as instituições políticas.

A fim de justificar a força que ganhou o capitalismo emergente no início da Idade Moderna, até chegar a consolidar-se como o principal sistema sócio-econômico e político da atualidade.

Inserido em um contexto de transformações econômicas e sociais decorrentes da passagem do feudalismo para o capitalismo, das mudanças intelectuais, culturais e religiosas advindas do movimento renascentista e do humanismo, bem como da expansão comercial e marítima dos séculos 13 a 16, o pensamento de Calvino sobre a organização social, a ordem política e o papel do cristão na mesma, através de um envolvimento efetivo disputando cargos eletivos, além de confrontar as idéias dos anabatistas e do grupo da Escola de Toulouse, representou uma alternativa ante as estruturas políticas vigentes, sob a influência católica romana, e aquelas idealizadas e defendidas por socialistas utópicos.

Calvino, como os humanistas, preocupou-se em formular as bases intelectuais, isto é, teóricas, ideológicas e metodológicas para fundamentar e regulamentar as novas práticas econômicas e as relações sociais e políticas inerentes a elas. Porém, indo além, estabeleceu uma ética para as mesmas a partir da teologia, ainda que não tenha deixado uma obra específica sobre o assunto.

Desse modo, estabeleceu princípios norteadores para a atuação dos magistrados e governantes e a ocupação de cargos públicos, ressaltando não só sua necessidade, mas o imperativo de que os mesmos fossem desempenhados por cristãos autênticos e tementes às verdades bíblicas.

Desde o final do século 19, os postulados de Calvino sobre propriedade, trabalho, salário, sociedade, Estado e política, entre outros, têm sido interpretados a partir de quem deles se apropriou e os reelaborou, ou apenas ignorou alguns aspectos, proposital ou inconscientemente, nos anos seqüentes, gerando algumas das modernas críticas aos mesmos.

 Assim, pensadores sociais procuraram no calvinismo, e em última instância em Calvino, as justificativas para o laissez-faire capitalista( expressão-símbolo do liberalismo econômico, na versão mais pura de Capitalismo de que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência), especialmente nas economias mais desenvolvidas e industrializadas do mundo ocidental cristão, como Holanda, Grã-Bretanha e Estados Unidos, cuja sustentação advém de uma nova organização política adotada sob a influência do ensino reformado ou puritano, alicerçado nas idéias do reformador.

Nesse sentido, a atuação política, que vem garantindo a manutenção das liberdades individuais e dos ideais democráticos, está na base das novas relações entre o cristão reformado e o Estado. Longe de encarar os cargos políticos eletivos como tarefa de somenos importância, ou como algo secular, Calvino, ao entender as questões políticas como algo espiritual e vital à vida do homem em sociedade, ofereceu ferramentas teológicas a partir das quais, e em constante diálogo com as mesmas, o calvinismo posterior interagiu com as principais questões políticas e sociais que se lhe apresentavam, sem omitir-se ou exceder-se em sua responsabilidade para com o Estado.

Assim sendo, se os ideais democráticos, em que a sociedade cristã ocidental está alicerçada e dos quais é tributária e principal mantenedora, ganharam força e se desenvolveram a partir de Calvino, seus ensinos devem ser conhecidos e divulgados. Isso permitirá que se evitem distorções pelo fato de eles geralmente serem estudados, como mencionado acima, a partir do movimento calvinista e de seus efeitos sobre essa sociedade. Também é evidente a necessidade de um retorno a esses princípios por parte do cristianismo oriundo da Reforma, a fim de que este cumpra o seu papel regulador, através do estabelecimento de padrões morais e éticos para a vida pública, como convém àqueles que são imitadores de Cristo e obedientes às Escrituras Sagradas. Isso se faz necessário notadamente no meio político brasileiro, no qual a maioria dos cargos eletivos é ocupada por políticos profissionais, cujos maiores compromissos são com interesses pessoais, partidários ou corporativos, em detrimento da lei magna, a Constituição, e da população, refém de suas disputas pelo poder e de sua desenfreada corrupção.

Vários são os exemplos de leituras feitas pelos reformados acerca das instruções de Calvino que culminaram em debates amplos em torno do papel da Igreja nas questões políticas e dos limites da submissão às autoridades constituídas. Porém, o melhor desses exemplos é a Revolução Inglesa de 1640, no que diz respeito ao seu contexto e conseqüências. Além disso, os principais grupos reformados adotam confissões e símbolos de fé que, seguindo o modelo da Instrução na Fé e das Institutas da Religião Cristã, abordam a importância e os limites da atuação dos magistrados civis e dos governos, bem como o lugar dos cristãos no setor político.

Faz-se necessária uma releitura da concepção de Calvino sobre a participação do cristão na vida pública, visando primeiramente entendê-la como uma vocação e resposta ao chamado de Deus. Além disso, é importante conscientizar os grupos que se declaram herdeiros das idéias do reformador sobre sua missão social e política no contexto pós-moderno de individualismo, sectarismo, relativismo e superficialidade, e de ignorância do teor e escopo do ensino bíblico sobre esse tema pela maioria dos membros das denominações calvinistas hodiernas.

Serão consideradas as seguintes questões:

O que o reformador pos-tulou sobre o tema?
Como entendia o papel do cristão nos assuntos do Estado?
Como via a participação política através de cargos eletivos?
Como o cristão envolvido com o governo civil deveria proceder do ponto de vista ético?
Há limites para a obediência ao Estado?

(a) o pensamento de Calvino sobre política em geral

(b) o seu pensamento sobre os cargos políticos eletivos, especificamente.


O uso do termo política traz no seu bojo os seguintes conceitos:

(1) o campo que engloba as diversas formas de estruturação do poder político, isto é, a organização da sociedade em torno de leis que estabelecem regras para o convívio social a partir da ação do Estado, sua principal instituição, com a sanção de seus cidadãos;

(2) a dinâmica dessa relação povo-Estado e vice-versa, suas instituições e seus objetivos;

(3) a área que procura compreender a estrutura e o funcionamento do Estado, e também

(4) a ética para a atuação na vida pública e o exercício de cargos que visem o bem público.


                      1. O PENSAMENTO DE CALVINO SOBRE O GOVERNO CIVIL


Desde o início, a perspectiva da atuação política se configurou em assunto de extrema importância para o movimento protestante, não só pelo fato de ele ter que lidar com a oposição dos governos e magistrados aliados da cúpula romanista, mas por entender que a única forma de garantir sua liberdade religiosa e de culto e, ainda, sua própria segurança e sobrevivência, seria através da discussão e do engajamento político, sem o qual ser-lhe-ia negado o direito à cidadania, ao trabalho e à vida.

Uma vez que não havia separação entre a Igreja e o Estado e que os limites da influência de cada um na esfera do outro ainda não se faziam claros, os reformadores e os grupos que se originaram da Reforma tenderam a debater e a delimitar o papel do Estado e a esfera de ação das lideranças políticas e religiosas. A ênfase de Calvino nesses aspectos levaria a laicização do Estado, especialmente em Genebra e nos países de orientação calvinista, a partir da era moderna.


ASPECTOS GERAIS

Em praticamente todos os seus escritos, Calvino demonstra atenção por temas como a vida em sociedade, como esta se organiza em torno do Estado, a forma como os magistrados governam, como o povo obedece às leis civis e aos governantes e é tratado pelos mesmos, e como os cristãos podem se envolver na vida pública candidatando-se aos cargos políticos eletivos. Nota-se nele a intenção de interpretar e aplicar o texto bíblico à realidade social, econômica e política de seu tempo.

 Para Calvino “a ordem do governo civil era um dos dons de Deus aos homens por meio de pensamentos pagãos que derivavam seus princípios e práticas da ‘lei natural’ (Gn 4.20)”.

Na base disso estava a sua crença na graça comum de Deus, segundo a qual os homens caídos podiam ter certo entendimento interior, dado pelo próprio Deus, no que concerne às coisas deste mundo.

A motivação de Calvino para essa reflexão sobre o governo civil à luz da teologia resultou, em primeiro lugar, dos debates e manifestações sobre a ordem social e política, e da necessidade de uma reestruturação das mesmas com base na nova cosmovisão que se impôs a partir do rompimento com a tradição e o status quo vigente sob o domínio católico e, em segundo lugar, da necessidade de refutar idéias equivocadas difundidas no meio protestante.

Para ele, a organização política está diretamente relacionada com a intervenção de Deus na história humana, que, como conseqüência direta do pecado, necessitou de uma ordem política e de todos os elementos que compõem o Estado. A fragmentação da humanidade em povos e nações resultara da queda e da separação de Deus. Conseqüentemente, a fim de que não crescessem a iniqüidade e a vergonha, ele interveio através de uma organização social baseada em governos humanos, leis e penalidades.

Sem pecado não teria havido magistrado nem ordem do Estado, mas a vida política em sua inteireza teria se desenvolvido segundo um modelo patriarcal da vida em família. Nem tribunal de justiça, nem polícia, nem exército, nem marinha são concebíveis num mundo sem pecado.

A ação soberana e incontestável do Deus trino, que permite a existência dos governos e autoridades civis ou os depõe, não só mantém a ordem sóciopolítica mundial como intervém na mesma, conforme os seus propósitos para a humanidade criada. E isso tendo em vista a manifestação de si mesmo em sua providência e o querer revelar-se na história humana em todos os seus aspectos, visando o fim último que é a concretização de seu plano para a redenção, justificação e santificação de seus escolhidos em todas as épocas.

Ao confrontar com as Escrituras Sagradas a teoria política e os modelos administrativos vigentes na época, Calvino sujeitou as idéias legais e políticas, herdadas desde a antiguidade, aos princípios básicos cristãos, produzindo algo novo. “Ele uniu a política à fé e ação cristã individual de uma forma que produziu o equivalente a algo que se aproximava de uma revolução no pensamento político de sua época”.5 A origem e manutenção das relações políticas estão na pessoa de Deus, objetivando a concretização de seus propósitos e a contenção do mal na sociedade humana.

Para ele o Estado é uma instituição criada e sancionada por Deus que possui o dever de salvaguardar e manter a ordem política. A partir desta afirmação de base é que se deve compreender tudo o que concerne à ordem política.

E o elemento aglutinador dessa ordem política, segundo Calvino, reside em uma ética exterior, a moral política, originada na moral espiritual, que nada mais é do que a moral da liberdade em Cristo, que a Igreja tem por missão fazer conhecer aos homens.

Calvino insiste que todas as idéias do justo e do injusto, do direito e da equidade são implantadas no ser humano por Deus. Dessa forma, todas as boas leis, cuja meta é a equidade, resultam da “lei natural” gravada por Deus na consciência do homem.A equidade, sendo como é uma qualidade natural, é sempre a mesma para todos os povos. Portanto, todas as leis do mundo, seja qual for o seu teor, devem convergir para a mesma equidade.Uma vez que seja manifesto que a lei de Deus a que chamamos lei moral outra coisa não é senão o testemunho da lei natural, e dessa consciência que foi por Deus esculpida na mente dos homens, nela própria foi prescrita toda a essência desta equidade... Daí, importa também que só ela seja a meta, a regra e o limite de todas as leis. Assim, pois, todas e quantas leis estivessem de conformidade com esta regra, que serão dirigidas a este alvo, que serão limitadas por este termo, não há por que sejam por nós reprovadas..

A conclusão a que chega é que os governos são necessários porque tanto a lei natural ou moral, como a própria revelação bíblica, não são suficientes para garantir a lei e a justiça na sociedade. Por isso é preciso que haja a intervenção do Estado, criando, sancionando, promulgando e zelando pelo cumprimento de leis que promovam justiça e ordem, garantam condições à vida, ao bem estar social, à liberdade individual e religiosa, e estabeleçam critérios justos para a utilização dos recursos naturais, fatores esses ameaçados pelo avanço do pecado e conseqüente degradação humana.

Calvino é categórico: só Deus pode refrear a degeneração total em que as sociedades estão sujeitas a cair, e ele o faz utilizando-se da organização política – que tem no Estado o seu representante central – em sua soberania e providência, através da graça comum.

, Calvino frisa que o Estado é indispensável para preservar a ordem no mundo sujeito ao pecado. Entretanto, Calvino parece  atribuir-lhe missão ainda mais ampla : “Os que desejam privar o homem desse amparo... necessário para sua peregrinação na terra... fazem violência à sua natureza humana” – subentende-se, natureza humana corrupta que necessita de freio.  A função do Estado, portanto, é também facilitar a vida material. Muito embora essa idéia não seja suficientemente desenvolvida, há aí, pelo menos, certo indício da noção do Estado como instrumento da Providência, ao lado da noção do Estado.

Nesse caso, o Estado e os governos, como “instrumentos da Providência”, têm por dever garantir a justiça, respeitando a liberdade do povo.Os que governam são constituídos protetores e mantenedores da tranqüilidade, da honestidade, da inocência e da modéstia públicas, e devem ocupar-se em manter o bem-estar geral e a paz comum.

Calvino não exclui a responsabilidade dos magistrados em relação à religião cristã no que tange a garantir que a mesma tenha autonomia para gerir-se, auxiliando-a no combate às heresias e na aplicação das penalidades, como “tutores e guardiães da Igreja”. Isso pode ser visto em seu comentário de 1 Timóteo 2.2 "Não basta que restrinjam a injustiça,e mantenham a paz, se não são igualmente zelosos em promover a religião e em regulamentar os costumes pelo uso de uma disciplina construtiva".

“O que eu aprovo é uma ordem civil que cuide para que a religião verdadeira, contida na lei de Deus, não seja publicamente violada nem maculada por uma licença impune”.

E isso, sem que aquela interferisse no campo religioso como tal. Assim, os magistrados, ao servirem à sociedade, estão a serviço de Deus e devem entender que a sua ação está ligada à justiça de Deus, que são instrumentos dele para a promoção do bem público.

Para esse fim ele criou o estado político, no qual o magistrado vem a ser seu representante para a execução da justiça (Êx 18.15; 22.28; Dt 16.18). O magistrado, não obstante, não tem um poder arbitrário, já que ainda que tenha o poder de infligir castigos, está sempre ligado pela lei básica ou constituição chamada “lei natural” de Deus, expressa formalmente de acordo com as necessidades físicas e psicológicas do país Êx 18.8) .
Assim que a justiça de Deus é o propósito último do Estado, seja qual for a sua forma, para que a justiça de Deus traga paz e liberdade à sociedade.

Além disso, na ordem política os que possuem autoridade de governo, ainda que maus ou medíocres, têm o direito de ser obedecidos, desde que não extrapolem os limites legalmente estabelecidos e não julguem ou ajam de forma a prejudicar a sociedade ou os direitos individuais conquistados. Vale frisar que isso não implica em subserviência ou sujeição irrestrita a regimes ditatoriais

Se eles ordenarem alguma coisa que vá contra [Deus] não lhes devemos dar a mínima atenção. E nisso não fazem nenhuma injúria à dignidade do superior, quando este se submete ao poder e à direção de Deus, sendo que ele é o único poder verdadeiro, comparado com os demais.

Todavia, a resistência deve ser pacífica, através dos magistrados, isto é, pelas diversas instâncias legais, especialmente para os cristãos que estejam insatisfeitos com os governantes e magistrados que administram e julgam as suas causas na vida pública. Ele continua mostrando que, dentro da legalidade e da ordem, o cristão tem o dever de resistir.

não devem intrometer-se por iniciativa própria, nem querer influir temerariamente no ofício do magistrado, nem tentar coisa alguma em público. Se houver alguma falta ou falha do governo que requeira correção, não devem por isso promover tumulto, nem se meter a determinar como pôr as coisas em ordem, nem pôr mãos à obra – as quais estão atadas no que se refere a essa questão. O que devem fazer é uma representação à autoridade superior, pois somente ela tem as mãos livres para resolver as questões públicas.

Ele declara que o parâmetro que determina as escolhas e ações cristãs é unicamente a Palavra de Deus. Isto é, nenhum governante pode fazer com que o cristão transgrida a orientação da mesma. É preferível sofrer a ir contra a verdade.

O edito do arauto dos céus, o apóstolo Pedro, de que “antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”, contamos com esta consolação: considerar que verdadeiramente prestamos a Deus a obediência que ele requer quando preferimos sofrer tudo quanto nos sobrevenha a desviar-nos da sua santa Palavra.

Assim sendo, os cristãos, conhecedores da verdade revelada nas Escrituras Sagradas, são responsáveis por preservar o Estado e as instituições políticas de situações que causem prejuízo à coletividade – o povo em geral, ainda que este em sua maioria não viva pelos princípios das Escrituras – através de atos revolucionários, tanto quanto possível, contra as autoridades constituídas, que as demovam pela força de suas funções. Isso é muito diferente do “conformismo oportunista que adula os detentores do poder, abandonando todo senso crítico e todo discernimento reclamado pela fé cristã”.18 Porém, caso a opressão não seja dirimida, o cristão, ainda que não um revolucionário radical, tem o direito à oposição.

 Sobre o sistema político ideal, Calvino relaciona o divino e o humano. Há uma ênfase objetiva no envolvimento dos cidadãos, e do cristão reformado em particular, nas questões que dizem respeito à ordem e às instituições políticas, inclusive ao Estado. Nesse caso, quando a Igreja, através de seus membros e líderes, se envolve nos assuntos políticos, não é a instituição que o faz, mas o Senhor proclamado na mesma, que tem uma relação com o Estado.19 E o reformador estabelece princípios que apontam para uma sociedade politica:

"Os magistrados podem também aprender qual é sua vocação, por isso que não é para si próprios que eles dominam, mas para o bem e proveito público; nem receberam eles um poder desmedido, ao contrário, um poder que está restrito ao benefício dos governados. Enfim, em seu principado, estão obrigados não somente para com Deus, mas também para com os homens. Uma vez que estão comissionados por Deus e é sua obra que têm nas mãos, de necessidade é que lhe prestem conta. Além disso, esta administração que Deus lhes confiou diz respeito e concerne aos governados; conseqüentemente, a estes também devem eles prestar contas.

Isso está na base do Estado constitucional que ganhou força a partir da Idade Moderna, independente do sistema de governo adotado. Nele, as obrigações e responsabilidades de governantes e governados são devidamente reconhecidas, respeitadas e observadas. O primeiro grupo protege os direitos dos indivíduos e cidadãos e impõe limites à liberdade individual para o bem comum. O segundo cumpre com seus deveres, tais como os de obediência às leis, pagamento de tributos e defesa do território, entre outros. Existe entre as partes uma aliança originada no próprio Deus.

Para Calvino a aliança instituída por Deus entre ele mesmo, os magistrados e o povo de um Estado é a mais básica instituição política. A lei fundamental da sociedade, como uma espécie de constituição, quer esteja escrita ou não, forma o material da aliança... Por esta razão, ainda que não seja reconhecida, existe entre os governantes e o povo de um Estado, em virtude de sua mútua aliança, uma obrigação à vista de Deus para tratarem-se um ao outro em justiça, equidade e retidão (Rm 13.1s). Os magistrados são a lei vivente a quem o povo tem que dar justa honra e obediência, e os magistrados, por sua vez, têm eles mesmos que obedecer cuidadosamente a lei (Dt 17.14s; 1 Tm 2.3). Aqui existe um novo tipo de constitucionalismo, não forçado pelas mãos de um monarca, como ocorre na Carta Magna, nem ditado por uma igreja supranacional, mas um constitucionalismo construído sobre a vontade criadora e o decreto de Deus.

Nota-se, então, que o estabelecimento de uma organização constitucional seria a forma de implantar e garantir uma organização política representativa, cujo princípio regulador fosse uma aliança justa e equilibrada entre cidadãos, magistrados e governantes, cumprida por todos. Daí a ênfase de Calvino no fato de que o governo ideal seria um tipo de “aristocracia”, não em termos de nobreza ou riqueza, mas de virtude. Esse governo seria eleito pelo povo, ou seja, deveriam ser escolhidos homens capazes para representar o povo na esfera do Estado. O que realmente importava não era a forma de governo em si (monarquia, república ou outra), desde que a liderança política, representada pelos magistrados sob a constituição, defendesse e respondesse pelo povo ante as pretensões e ambições de governantes tirânicos, sob pena de terem que prestar contas a Deus caso negligenciassem essa responsabilidade.

" Aos que são constituídos nas respectivas instâncias ou estados, de maneira nenhuma me oponho a que resistam à intemperança ou à crueldade dos reis, conforme o dever que lhes cabe. E declaro que, se eles disfarçarem ou se omitirem, vendo que os reis oprimem desordenadamente o pobre povo, eu consideraria tal omissão um verdadeiro perjúrio, pelo qual estariam traindo maldosamente a liberdade do povo, da qual eles deveriam saber que pela vontade de Deus foram ordenados tutores."

Esses são, em linhas gerais, os postulados de Calvino sobre a esfera política, os mais pertinentes ao objetivo deste estudo.


Próximo artigo :  Papel dos cristãos reformados em relação aos cargos políticos eletivos e à atuação na vida pública.