quinta-feira, 24 de maio de 2018

Violências sexuais: incesto, estupro e negligência familia

Este artigo discute os desafios envolvidos na assistência em Terapia Familiar Psicanalítica de uma mulher de 41 anos, vítima de incesto dos sete aos 12 anos, seguido de duas situações de estupro, que implicaram em um aborto e no nascimento de uma menina, com sete anos na ocasião do estudo.

Apresentou-se infantilizada, dependente, sem autonomia, com diagnóstico de borderline. Em nenhum momento, encontrou na mãe alguma forma de apoio. Pais, em conluio perverso e abusivo, causam danos lesivos à constituição psíquica de seus filhos, cujas vidas ficam destroçadas, e levam a pensar que eles próprios tenham tido seus psiquismos danificados, marcados por vivências impensáveis, revertidas em segredos. Transformar e reparar são os objetivos de toda Terapia Familiar Psicanalítica e, nestes casos, os desafios são imensos, pois, entre as várias conseqüências clínicas de tal situação, há um ódio exacerbado à realidade, intensas vivências persecutórias e a reedição transferencial da dinâmica familiar no enquadre terapêutico

Os contos de fada vêm sendo recontados ao longo dos tempos e propagados em diferentes versões.
Ao lidar com questões humanas universais, eles apresentam problemas e soluções e transmitem, ao
mesmo tempo, significados manifestos e latentes,comunicando-se com todos os níveis da personalidade humana, seja ela infantil ou adulta. Bettelheim (1978)considera que, à medida que as estórias se desenrolam elas validam e dão forma a pressões do id, apresentando vias para sua satisfação de acordo com as demandas do ego e do superego.

Pele de Asno, um conto conhecido de Perrault (1883/1978), aborda a questão dos desejos incestuosos
por meio da intenção de um rei de se casar com sua filha. Viúvo, estava preso à promessa que fizera à sua mulher, a rainha, em seu leito de morte, de só vir a se casar novamente se fosse com uma mulher mais bonita e mais virtuosa do que ela. Após buscas infrutíferas, ele começou a notar que a beleza, os encantos e a inteligência da princesa, sua filha, ultrapassavam muito os da rainha morta. Tomado por violento amor, declarou--lhe sua decisão de desposá-la, já que somente ela poderia livrá-lo de seu juramento. A princesa, cheia de virtude e pudor, sentiu-se desfalecer diante de tão terrível
proposta. O rei procurou aconselhar-se com um velho druida que, por interesses pessoais ambiciosos, atenuou a gravidade do crime que ele pretendia cometer - afinal, perguntando-se a qualquer menininha com quem ela desejará se casar quando crescer, a resposta será sempre
a mesma: com papai!”.

Da perspectiva da criança, o conto aborda toda uma série de fantasias e desejos da menina pequena
enredada com sua trama edípica: superar a mãe emtudo e vir a substituí-la, casando-se com o pai. Apresenta tais desejos como proibidos, como um crime grave. Se o desejo do pai pela filha pode ser interpretado como decorrente das identificações projetivas dela a seu respeito, o desejo dele também é abordado pelo conto,com o rei se apresentando confundido na linguagem de sua paixão, como diria Ferenczi (1933/1992). 

O desejo deste pai teve que ser interditado pela fada madrinha,para quem a função paterna estava bem estabelecida,permitindo-lhe, assim, auxiliar na resolução do conflito.
Contudo, além dos contos de fada, a realidade pode ser bem diferente.
O conto A bela adormecida tem uma versão do século XVI, portanto, anterior a Perrault e conhecida
por ele. Intitula-se Sol, Lua e Tália, e aborda uma situação de estupro. Seu autor é um napolitano chamado Giambattista Basile (Canton, 1994). Nessa versão, o pai de Tália, recém-nascida, é prevenido pelos sábios de que ela morreria de um ferimento no dedo. Embora o pai tivesse proibido a permanência, no reino, de qual-quer objeto semelhante à roca, ela encontra uma e se
fere. Tália entra em um estado de sono ininterrupto,similar à própria morte, e é abandonada no castelo por seu pai. Em meio a uma caçada, outro rei chega ao castelo e, impactado pela beleza do corpo inerte de Tália, violenta-a, abandona-a e esquece o fato. Nove meses depois, ela dá à luz um menino e uma menina,que são chamados de Sol e Lua. Apesar de continuar desacordada, as crianças mamam em seu peito e, certo dia, por engano, o menino suga seu dedo, remove o fuso que se encontrava cravado e devolve-lhe, assim, a vida. A seguir, o mesmo rei volta por acaso ao castelo e
descobre o que acontecera, vendo-se com uma família ilegítima, porque ele já era casado antes do incidente. A rainha adivinha o que se passara e, furiosa, planeja matar os filhos ilegítimos do marido. Por um artifício, consegue a posse deles e entrega-os ao cozinheiro, com a ordem de prepará-los para a refeição do marido. Apiedado, ele poupa as crianças e as substitui por outro tipo de carne. Depois, a rainha também tenta matar Tália e,quando está prestes a consegui-lo, o rei chega e salva seu verdadeiro amor.

Canton (1994) comenta que todas as versõesclássicas do conto A Bela Adormecida, ou seja, as mais
conhecidas, invertem o ato de violação, transformando--o em salvação, de forma a torná-lo uma lição de moral e de comportamento sexual, paciência e docilidade para a mulher.

Muitas interpretações podem ser feitas a partir da versão de Basile, considerando todas as relações
conflituosas de que trata. Para os objetivos deste trabalho, optou-se apenas por mencionar o ato sexual imposto, sem o consentimento da mulher, com a gravidez decorrente, e expor os versos com os quais termina esta versão, que pode ser considerada a original: “Gente feliz, é o que se diz, É abençoada pela Sorte na cama”.

Por meio dos contos de fadas, as crianças, de um modo geral, têm acesso à elaboração e à simbo-
lização de questões universais que envolvem sexo,desejo, lei e morte. Mas aquelas que estão expostas a situações reais de incesto e abuso sexual, muitas vezes em suas próprias casas, vêem-se profundamente sós,sem possibilidade de simbolizar e transformar essas experiências tão nefastas, cujas marcas serão carregadas pelo resto de suas vidas. Isto se agrava, em muitos casos, por não poderem contar, em seu meio familiar, com suporte e tratamento apropriados, o que lhes acontece,
devido ao próprio comprometimento parental.

Neste trabalho, apresentam-se primeiramente as conseqüências das situações de abuso sexual na infância, que não são esquecidas pelo sujeito com o passar do tempo. A seguir, abordam-se questões pertinentes à relação entre a vítima de incesto e sua família, tecendo-se algumas considerações sobre o universo do estupro e sobre a negligência familiar, para apresentar-se,finalmente, um caso clínico, atendido em serviço de psiquiatria de hospital universitário público.
Quando, com o tempo, não passa: as marcas deixadas pelo abuso sexual na infância.

Existem elementos que são determinantes no impacto psicológico da vivência de abuso sexual na
infância e suas conseqüências. Alguns implicam em um melhor prognóstico, outros não. De acordo com Gauthier (1994), aqueles que favorecem um melhor prognóstico dizem respeito a: 

1) Família unida no momento do abuso; 
2) Ter se dado o abuso uma única vez;
3) Abuso se integrando em uma relação afetiva sem violência; 
4) A criança tendo certa maturidade e conhecimento sexual, 
5) Tratar-se de abuso extra-familiar;
6) Meio familiar com capacidade de escuta, permitindo a revelação; 
7) A revelação ser um segredo mediatário absoluto; 
8) Busca rápida de assistência; 
9) Existência de equipe especializada e de local apropriado para atendimento; 
10) Escuta, exames e assistência reagrupados desde a revelação, em tempo hábil; 
11) Suporte do meio familiar; 
12) Em um primeiro tempo, manutenção do enquadre de vida na ausência do agressor designado;
13) Encaminhamento assistido, com apoio judicial; 
14)Conhecimento do futuro do acusado, se ele é julgado culpado e se não é da família.

Já aqueles que envolvem um pior prognóstico implicam em: 
1) Problemas familiares precedendo ao abuso; 
2) Abusos repetitivos por um período longo; 
3) Abuso cometido por meio da força ou de ameaças de
violência; 
4) Criança com baixa idade; 
5) Abuso intra--familiar cometido pelo pai natural; 
6) Intensidade das ameaças vividas pela criança; 
7) Meio isolado, pouco rico em relações, não permitindo a revelação; 
8) Falta de discrição, exposição ao meio, inclusive à mídia; 9)
Revelação não tratada ou não levada em consideração(quando a vítima é desmentida); 
10) Multiplicidade de interventores e falta de coordenação da assistência; 
11)Muita demora para se tomar decisões que impeçam o abuso, acarretando desconsideração e esquecimento da saúde psíquica da vítima; 
12) Multiplicação de exames físicos da vítima; 
13) Criança desconsiderada e não ajudada em sua família; 
14) Retirada da escola e da sua própria situação de vida; 
15) Retorno do abusador designado ao domicílio da criança, no momento da revelação; 
16) Convivência com o abusador forçada pela mãe;
17) Comparecimento da criança como autora da queixa ou como testemunha em tribunal penal.

As conseqüências das situações de abuso sexual na infância implicam em fatores traumáticos, internos e externos, em curto, médio e longo prazos, e dependem de uma série de aspectos, tais como a idade da vítima,a recorrência das situações abusivas, a complacência e a conivência familiares, as reações familiares após a revelação, agravadas quando implicam em desmentir a criança, denegação e permanência da situação abusiva,com o silêncio e o conluio familiares, sem contar uma
possível falta de compromisso por parte de outros adultos do ambiente da criança, inclusive do sistema escolar e de saúde. Membros da família extensa podem conhecer a situação e preferir se calar para não separar a família.

No que diz respeito aos fatores traumáticos internos, existe uma diferença significativa quando a
criança encontra na mãe uma figura protetora e quando não encontra: no primeiro caso, medidas são tomadas para sua assistência e proteção; no segundo, ela é desmentida e permanece exposta às situações abusivas. A violência à qual ela é submetida tem, então, duas faces: a do abuso sexual em si e a do abuso moral, pela denegação materna. Isto aumenta a confusão da criança
quanto às percepções, às emoções e ao entendimento no que diz respeito a si própria e ao meio circundante,sobretudo por sua incapacidade de gerenciar, na idade em que se encontra, e sozinha, suas vivências, que ultrapassam sua capacidade de elaboração e permanecem como fonte de angústia. A vivência traumática sobrevém em um período de construção psíquica e de grande vulnerabilidade. A imagem que a criança tem de si mesma fica distorcida, assim como sua visão de mundo e a compreensão de suas capacidades afetivas,ainda mais por ela estar em uma família cuja comunicação se apresenta particularmente comprometida,calcada na dupla mensagem e no duplo vínculo


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